Doutrina

 DOUTRINA  

ARRENDAMENTO

A Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto,( o ficheiro em PDF está anexo no final da página) veio alterar significativamente todo o regime jurídico do arrendamento, revendo as normas do Código Civil. do Código de Processo Civil e a própria Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, conhecida como NRAU (Novo regime do Arrendamento Urbano). Claro que este só era novo porque substituíra o RAU ( Regime do Arrendamento Urbano). aprovado pelo Decreto-lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, o qual sofreu, por sua vez, várias alterações e "remendos" durante a sua vigência. Não importa agora fazer a história muito conturbada do arrendamento em Portugal, particularmente a do arrendamento urbano. Destacaremos apenas que esta sucessão de regimes demonstra com toda a evidência a importância determinante do Direito e da administração da Justiça na evolução e desenvolvimento da sociedade. 

FAMÍLIA E SUCESSÕES

SOCIEDADES

 

                                        A Empresa e o Empresário

                                                                                        José J.Barros

                                                                            ( tese de mestrado em Ciências Jurídico Económicas da Faculdade de                                                                                Direito de Lisboa)

CAPÍTULO I

  PARA UMA LEITURA CRÍTICA DO MEIO ENVOLVENTE

 

 

1. UMA DE VÁRIAS PERSPECTIVAS

 

            A empresa é um tema apaixonadamente discutido seja qual for o “plano” em que se aborde: científico ou meramente ideológico. Isto é, independentemente dos pressupostos “contrafactuais” [1] que situem a discussão.

            No plano das ciências sociais, a empresa é uma questão que se desdobra pela Economia, pelo Direito, pela própria História e também, evidentemente, pela Sociologia.

            Como objecto de discussão político-ideológica ela é há anos um tema candente, e dos que mais clara e significativamente posicionam os interlocutores.

            Na verdade, pela empresa passam os problemas, ainda vistos por alguns como fundamentais, relativos aos regimes e estruturas da propriedade e dos meios de produção. Por ela passam muitas das questões – estas efectivamente essenciais – relativas aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos: da liberdade de iniciativa económica ou liberdade de empresa, à liberdade de associação e liberdade sindical; do direito do trabalho e à segurança no emprego, ao direito a um ambiente sadio e equilibrado e à qualidade de vida; enfim, do direito de intervenção democrática dos trabalhadores na vida das empresas e à sua participação na elaboração da legislação do trabalho e do planeamento económico-social.

            Não poderá, pois, estranhar-se que, na maior parte dos casos, o tratamento da empresa traduza menos uma desapaixonada pesquisa da realidade, e mais a justificação de concepções pré-determinadas por causas ou factores externos ao particular campo científico onde o analista se move.

            De uma forma, ou de outra a empresa exige indubitavelmente uma visão “macroscópica” do meio envolvente sem a qual se corre o risco de elaborar conceitos porventura hermeneuticamente bem deduzidos mas que pouco ou nada traduzem da realidade; como tal, a sua operatividade será sempre reduzida e a sua utilidade duvidosa.

            É neste sentido que, antes de procurarmos averiguar a relevância jurídica da empresa, se propõe uma leitura crítica do meio envolvente. Leitura essa que, também necessariamente, está à partida delimitada por pressupostos “contrafactuais”.

   

2. CAPITALISMO E ECONOMIA DE MERCADO

 

Da categoria marxista “modo de produção” e do resultado dos critérios eleitos por Werner Sombart (1863-1941) para identificar os sistemas ou regimes económicos “concretos”, nos ficou o hábito de falar em “modo de produção capitalista” ou “sistema de economia capitalista”.(2)

            Um e outro, como é fácil verificar, se pretendem historicamente fundamentados.

            Em contrapartida, foi pela via da abstracção e até da negação de qualquer regularidade histórica que Walter Eucken chegou aos conceitos de economia de mercado e de economia de direcção centralizada. O primeiro “sistema” seria coordenado pelo mercado, ou melhor, pela concorrência, e o segundo por uma autoridade central cujas decisões se materializam num plano imperativo.(3)

            “Sistema capitalista” e “economia de mercado” são pois, à partida, o resultado de duas perspectivas e de dois métodos de indagação completamente distintos. No entanto, por força de uma não inocente mistificação ou nebulosidade ideológica tornou-se um lugar comum apresentá-los como conceitos equivalentes.

            Fernand Braudel (4) contestando tal identificação ou equivalência, procurou demonstrar que o capitalismo não corresponde a um modo de produção.

            É claro que, desde sempre, muitos autores e dos mais diferentes quadrantes, têm verificado a coexistência de vários sistemas, regimes ou modos de produção, de estruturas e relações produtivas bem diferenciadas nas economias concretas, quer a nível nacional, quer a nível internacional. E sobretudo a este nível.

            Mas se bem entendemos, Fernand Braudel vai mais longe. Para o autor, o que caracteriza e sempre caracterizou o capitalismo foi constituir-se como cúpula de toda a base da vida material dos homens, amparando-se num poder lentamente amadurecido.

            “ – O capitalismo assenta, ainda, sobre uma exploração dos recursos e das possibilidades internacionais, por outras palavras, existe à escala mundial ou, pelo menos, aspira ao mundo inteiro. Actualmente, o seu maior problema é refazer esse universalismo”.

            “ – Apoia-se, ainda e sempre, obstinadamente, em monopólios de direito ou de facto, apesar de todas as violências que, por essa razão, se têm desencadeado contra si. Aorganização, como hoje se diz, continua a conseguir contornar o mercado. E não é justo considerar esse facto como absolutamente novo”.( 5)

            Braudel delimita o conceito de Economia-Mundo como um espaço geograficamente determinado (mas susceptível de variações e até, por vezes, de rupturas(6); espaço este submetido a um centro, a um pólo urbano dominante com referência ao qual se vão circunscrevendo zonas centrais (o coração), zonas periféricas, “onde a vida dos homens faz lembrar frequentemente o purgatório ou o inferno”.

            As zonas fronteiriças que delimitam estes espaços integrados são economicamente inertes e também áreas “difficiles à franchir, souvent des barrières naturelles, des no man’s land, des no man’s seas. C’est le Sahara, ses caravanes, entre l’Afrique noir et l’Afrique blanche. C’est l’Atlantique, vide au sud et à l’ouest de l’Afrique…” 7

            “C’est miracle que l’Europe ait déplacée ses limites d’un seul coup, ou presque, avec les grandes découvertes de la fin du XV siècle. (…) La réussite de la route du Cap de Bonne-Espérance, aurait été impensable sans ce triomphe préalable de longue durée. Et voyez combien elle coutera d’efforts, exigera des conditions : son premier ouvrier, le Portugal, s’y épuissera litéralement. La victoire caravanière de l’Islam à travers les déserts révèle aussi de l’exploit, un exploit lentement assuré par la construction d’un réseau d’oisis et de points d’eau”.( 8)

            As relações entre as diferentes zonas de uma economia-mundo explicam-se, evidentemente, pelos respectivos graus de desenvolvimento. As relações entre o centro e a periferia são, ontem como hoje, relações de dependência e de subordinação.

            Os polos urbanos dominantes também não são eternos, obviamente. Sucedem-se no tempo. Estas transferências de dominação repercutem-se em todo o espaço da economia-mundo. Os seus reflexos não são apenas de natureza económica, mas tangem, outrossim, o universo sócio-cultural.

            É com base na ascensão e declínio dos pólos urbanos dominantes que Braudel expõe os movimentos de descentramento e de recentramento ocorridos na Europa e nas zonas economicamente anexadas pela Europa, desde o séc. XV até aos nossos dias – melhor, até aos anos 30 do século XX, data do último recentramento, em Nova Iorque.

            No séc. XV, o pólo da economia-mundo situava-se em Veneza. “Por volta de 1500 há um salto brusco e gigantesco de Veneza para Antuérpia e, posteriormente, por volta de 1590-1610 verifica-se uma transferência para Amesterdão e aí se estabilizará o centro económico da zona europeia ao longo de quase dois séculos. Entre 1780 e 1815 o centro deslocar-se-á para Londres. Em 1929 atravessa o Atlântico e vai situar-se em Nova Iorque”.( 9)

Por regra, tais movimentos estariam intimamente ligados a prolongadas crises económicas.

Em resumo e da maneira mais simples possível pode afirmar-se:

a)      Que as relações capitalistas determinadas pela cúpula da economia-mundo são muito anteriores à revolução industrial e ao liberalismo económico;

b)    Que os movimentos de descentramento e recentramento estão intimamente relacionados com o comércio de longo curso ou, se quisermos, com a exploração da periferia pelo centro da economia-mundo;

c)      Que os grandes operadores económicos situados nessa mesma cúpula nunca estiveram sujeitos ás leis de mercado – antes e depois das ideias liberais –, beneficiando, pelo contrário, de monopólios de facto ou de direito, quando não da força das armas, directa ou indirectamente garantidos pelo poder político.(9a)

 

  

3. SISTEMA DE PLANEAMENTO E SISTEMA DE ECONOMIA DE MERCADO

 

            Atentando à realidade que hoje nos envolve – e referimo-nos apenas aos chamados países do mundo ocidental – é a todos os títulos evidente a profunda disparidade existente entre os diferentes sectores da vida económica.

            Deparamos, por um lado, com sectores dominados por grandes organizações – algumas mesmo gigantescas – cuja estratégia de actuação é cuidadosamente planeada, a nível nacional e, mais frequentemente, a nível mundial.

            Por outro lado, deparamos com os sectores da indústria “tradicional”, normalmente relegados para a periferia e cujas condições de sobrevivência são precárias e em grande parte ainda dependentes dos impulsos, reacções ou comportamento de mercado.

            Galbraith chamou ao primeiro o sistema de planeamento e ao segundo o sistema de economia de mercado.

            É claro que do sistema de planeamento fazem parte todas aquelas grandes organizações empresariais que, por um ou por outro meio, contornam ou se sobrepõem às regras do mercado, independentemente do sector (público ou privado) a que pertença a propriedade desses meios de produção.

            O que há de característico nas empresas do sistema de planeamento é a existência de uma forte organização, no seio da qual se gera uma tecno-estrutura, com objectivos próprios.

            Tias objectivos correspondem às necessidades de protecção e de afirmação dessa mesma tecno-estrutura.

            A organização é uma das fontes do poder. As outras são a personalidade e a riqueza.(10)

Mas a organização é hoje a fonte do poder por excelência. Nela, e por ela, se forjam as “personalidades” que, através dos instrumentos do poder, têm acesso à outra fonte, ou seja à riqueza.

Compreende-se pois que a grande empresa, através da sua forte organização, tenha conseguido contornar ou sobrepor-se aos mecanismos e processos de mercado.

Antes de mais, a grande organização empresarial tem absoluta necessidade de controlar os preços dos seus produtos ou serviços. De facto, vultosos investimentos em capital fixo e em tecnologia são absolutamente incompatíveis com grandes oscilações nos preços.

A consequência de capitais fixos grandes numa economia é elevar o grau da sua «viscosidade» e torná-la semi-rígida. As adaptações da economia tornaram-se mais difíceis em dois campos:

a)      No caso da oferta e da procura de bens (...);

b)      No da poupança e do investimento" (...). (11)

            Em suma, a grande empresa tem necessidade de assegurar a rendibilidade dos seus investimentos em capital fixo, cuja amortização e reintegração são naturalmente morosas.

            Planear e assegurar um ciclo de vida suficientemente longo do “produto”, ainda que com constantes “novidades” específicas, bem como um preço de venda compensador, torna-se assim o objectivo essencial da grande empresa. (12)

            Claro está que este objectivo não é exclusivo das grandes empresas do sistema de planeamento.

            Subtrair-se às regras “impiedosas” do mercado é um objectivo inerente a todas as empresas. Como qualquer sistema – e vista a empresa por este prisma – , o seu crescimento e poder dependem da inerente capacidade para integrar a “natureza exterior”. (13)

            Só que umas – a grande maioria –, não têm força para tal. Por isso nunca o conseguem. (14) Tal objectivo exige uma organização poderosa através da qual se possa exercer influência sobre os poderes públicos e sobre o consumidor.

          a) A influência sobre o consumidor exerce-se primordialmente utilizando as modernas técnicas de marketing, onde basicamente se compreendem os Estudos de Mercado, a Publicidade e a Força de Vendas. Todas estas técnicas podem ser combinadas em maior ou menor grau. Podem ser dirigidas para alcançar simultaneamente mais do que um objectivo.

              Assim, um estudo de mercado pode destinar-se a detectar uma real necessidade num determinado sector do mercado. O que raramente sucede. Mais frequentemente, destinar-se-á a auscultar a receptividade de uma ou mais classes de consumidores a um produto já concebido e a medir a eficácia relativa dos eventuais meios de persuasão a utilizar.

              É sobejamente conhecida a força das mensagens publicitárias quando veiculadas pelos grandes meios de comunicação de massas, como a televisão. (15) Ao ponto de poder afirmar-se que, tendencialmente, o grande salto qualitativo no processo de crescimento da empresa se dá exactamente a partir do momento em que esta dispõe de meios financeiros que lhe possibilitem manter aí uma grande campanha publicitária.

              A publicidade que começou por ser meramente informativa, tornou-se agressiva nos anos 50 e hoje é essencialmente sugestiva.( 16)

              O que define esta publicidade sugestiva é o facto de pouco ou nada ter a ver com a divulgação das eventuais características do produto. Dirige-se essencialmente aos desejos e anseios mais profundos do consumidor – desde a sexualidade ao anseio de imitação de um determinado padrão de vida. Ou seja, esta publicidade impõe, por vezes subliminarmente, padrões de comportamento e já nem se preocupa em disfarçar tal objectivo. É possível e fácil demonstrar que o padrão “cultural” dominante para cada “estação” é largamente concebido e determinado por técnicas publicitárias e que ele se destina essencialmente a servir os objectivos das grandes organizações empresariais do sistema de planeamento.(17) Esta asserção será tanto mais correcta quanto mais culturalmente débil é a comunidade a que a mensagem se destina.

              As técnicas publicitárias podem ainda combinar-se com diferentes técnicas de vendas.

É o que acontece com o chamado direct marketing, que compreende o mailing, isto é, a divulgação e venda através do correio, e o telemarketing, a divulgação e venda de produtos e serviços por telefones com “sketches” e tempos de acção rigorosamente programados.

A este conjunto de técnicas vieram juntar-se, recentemente, os poderosíssimos instrumentos que a informática e sobretudo a Internet oferecem.(17a)

 Na última década assistiu-se à ascensão e também à recente queda de muitas das chamadas “dotcom", as quais, revelando-se muitas vezes miragens tecnológicas ‘virtuais’, chegaram a atrair investimentos que nunca poderiam ter um adequado retorno. Mas, também destes fenómenos se faz a economia global que, obviamente, nunca avançou e nunca avançará sem a aventura e o risco.  Uma coisa é certa. A globalização “cibernética”, determinou já e continuará a determinar alterações profundas em todas as formas de organização do trabalho e no relacionamento da empresa com o meio envolvente, como qualquer um pode aperceber-se.  Mas, para o objectivo que de momento  nos ocupa, o que pode afirmar-se, com toda a certeza, é que as organizações produtivas terão de utilizar, em maior  ou menor grau, não só os imprescindíveis e poderosos meios informáticos, sem os quais nenhuma organização sobreviverá, mas também a comunicação com fornecedores e clientes através da Internet.

 b) A grande organização empresarial do sistema de planeamento exerce uma influência decisiva – e não pode deixar de fazê-lo – sobre os poderes públicos: sobre os governos, sobre as assembleias legislativas e sobre os seus órgãos.

Desde logo, porque operam em sectores económicos considerados importantes para as políticas nacionais de defesa ou em sectores fundamentais para o próprio desenvolvimento económico: indústrias de armamento, aeronáutica civil e militar, sector energético, telecomunicações, construção naval, transportes, bancos e seguros, etc..

Tais empresas são fornecedoras privilegiadas dos Estados ou garantem bens e serviços essenciais à comunidade e serão ainda responsáveis por uma significativa percentagem do investimento global.

Por outro lado, os governos, as regiões e comunidades locais não podem ficar indiferentes face à perspectiva de eventuais despedimentos em massa que uma grande empresa poderá ser obrigada a praticar, caso se encontre em dificuldades económicas, como todos constatam diariamente. De resto, esse é o primeiro e decisivo argumento da grande empresa.(18)

Mas um outro meio e certamente não menos importante, pelo qual a organização do sistema de planeamento exerce o seu poder, influenciando directamente os poderes públicos, consiste naquilo a que Galbraith chama a simbiose burocrática. (19)

Efectivamente, os objectos de protecção e de afirmação de todas as tecno-estruturas são semelhantes e coincidem no essencial.

A forma mais clara de manifestação da simbiose burocrática é-nos revelada, à escala mundial, pelas frequentes transferências entre os titulares de cargos públicos e de postos de gestão. Em regra, a ambição de um gestor de uma grande empresa é vir ocupar um cargo de Ministro, de Secretário de Estado ou mesmo de menor importância, ainda que seja com algum prejuízo temporário ao nível da remuneração; prejuízo esse que poderá ser largamente compensado a médio prazo.

Correlativamente, e porque o poder político, nos regimes democráticos, é necessariamente transitório, a primeira preocupação dos titulares dos cargos políticos é, inevitavelmente, assegurar a retirada: um lugar na direcção ou administração de uma grande empresa. As empresas com alguma participação pública são neste aspecto, organizações talhadas à medida desta necessidade, como sabem ou deveriam saber os eleitores informados de todo o mundo. (20)

Mas mais importante ainda do que a manifestação atrás referida, é a coincidência de interesses da burocracia dos serviços públicos e da tecno-estrutura empresarial que  revela um objectivo vital para ambos: o crescimento da organização.

Os membros das burocracias privadas e públicas são servidas pelo crescimento e consequentes promoções, ordenados, gratificações, prestígio e poder, aquilo que expande uma burocracia expande a outra”. (21)

O objectivo imediato e prioritário da grande empresa do sistema de planeamento é, pois, o seu crescimento. E isto resulta das necessidades imanentes à própria organização e manutenção da tecno-estrutura.

Este facto permite-nos compreender uma série de reais contradições e colisões de interesses que se manifestam no seio das grandes estruturas empresariais e cuja relevância jurídica, económica e social é indiscutível.

 

4. O ESTADO INTERVENCIONISTA E A COERÊNCIA DO SISTEMA JURÍDICO

 4.1. Sobre a permanência da crise

             A omnipresença do Estado, a concentração do poder económico e a internacionalização da produção são os três factores, aliás estreitamente relacionados, que melhor e mais profundamente caracterizam o sistema dito de capitalismo avançado ou organizado.(22) É a globalização, diríamos hoje, considerando que, apesar de multiplas variantes, o sistema se afirmou como suporte das economias mais desenvolvidas.

            Após a grande depressão dos anos 30, foi através de uma maior intervenção do estado na vida económica que se conseguiram debelar ou amortecer as grandes flutuações cíclicas – no sentido de profundas, intensas, e não dos ciclos longos de Kondratieff. Flutuações essas resultantes do funcionamento dos mecanismos “naturais” do mercado.

            No entanto, e paradoxalmente, as sociedades capitalistas avançadas vivem – diz-se – uma crise permanente, especialmente constatada e comentada a partir da década de setenta.

            Para Jurgen Habermas as crises são transtornos permanentes de integração do sistema e que põem em perigo a própria integração social.

            “Les crises naissent lorsque la structure d’un système social affronté à un problème admet moins de possibilités de solutions que le système n’en réclame pour se maintenir. En ce sens les crises sont des troubles permanents de l’intégration du système 23 (…) “Les états de crise se présentent sous la forme d’une désintégration des institutions sociales. (…)”.

            “Les phénomènes de crise doivent leur objectivité au fait qu’ils naissent des problèmes de régulations restés sans solution”. 24

            O autor identifica tendências possíveis para a crise, que nasceriam dos sistemas ou subsistemas económico, político e sócio-cultural e assumiriam as formas de crises económicas, crises de racionalidade, de legitimação e de motivação, sendo as duas primeiras crises do sistema e as duas últimas crises de identidade.

            As crises económicas perderam a sua natureza espontânea e pseudo-natural, porque o próprio sistema económico terá perdido a sua autonomia funcional relativamente ao Estado (ao sistema político).

            A intervenção do Estado permitiu amortecer ou “adocicar” as crises económicas cíclicas, mas estas manifestam-se agora como uma crise permanente que atinge o sistema administrativo, impotente para gerir todas as situações de crise, e o próprio sistema de legitimação política.

            As motivações fornecidas pelo sistema cultural constituem um dos limites às possibilidades de gestão pública da crise.

            Quanto menos motivações este for capaz de fornecer, maior necessidade terá o sistema global de fomentar atitudes “consumistas” e culturalmente neutras – substitutivas ou compensatórias das suas insuficiências ao nível político e a níveis mais particularizados, como sejam os do emprego e das estruturas educativas, por exemplo.( 25)

            Mas as compensações fornecidas pela redistribuição de rendimentos têm também, como limite, as possibilidades oferecidas pelo sistema fiscal, que, como se sabe, não são ilimitadas.

            Da contínua deslocação da crise no interior do sistema social e da necessidade da sua gestão pública, advém a omnipresença do Estado que, em muitos aspectos, asfixia a sociedade civil.

 

4.2. A estratégia de integração global

 

            A actuação do Estado traduz, pois, uma estratégia de integração global que visa absorver o maior número possível de contingências dos processos económicos e a resolução do maior número de conflitos de interesses.

            São diversas as formas de actuação do Estado (26) e algumas medidas concretas comportam, em si mesmas, claras contradições.

            A título de exemplo. A legislação da concorrência visa preservar o dinamismo do mercado, proibindo as práticas individuais e colectivas restritivas da concorrência, os abusos de posição dominante, etc..

            Mas, por outro lado, incentivam-se de maneira clara ou disfarçada os actos de concentração ou mera cooperação empresarial,( 27) como as fusões, aquisições e a constituição de grupos, ou apenas a constituição de agrupamentos complementares de empresas e de consórcios.

            Os incentivos à colaboração e até à concentração empresarial fundamentam-se na necessidade de competir a nível internacional e no reconhecimento implícito de que os aumentos de produtividade exigem volumosos investimentos – o que, aliás, nem sempre ou raramente é verdade –. Digamos que o Estado como que “institucionaliza” o progresso técnico, presumidamente ao alcance da grande estrutura empresarial., acolhendo-se assim, mitigadamente, as teorias que vêem nos lucros suplementares dos monopólios ou oligopólios um factor de aceleração do crescimento económico.

            Esta contradição está presente em todas as legislações europeias de “defesa da concorrência”. A necessidade de incentivar as formas “benéficas” de concentração foram, aliás, expressamente definidas pela então Comissão das Comunidades Europeias (actualmente União Europeia), com fundamento na necessidade de concorrer com as grandes multinacionais de origem Norte-Americana.( 28)

            Nesta estratégia de integração compreendem-se medidas tão diferentes como a criação de “empresas públicas”, agora com regimes mais flexíveis e diferente nomenclatura, (para “acondicionar” a infra-estrutura necessária ao desenvolvimento económico, por imperativos de interesse público ou pelo simples desinteresse da iniciativa privada), os contratos económicos, os incentivos fiscais e financeiros, o apoio às pequenas e médias empresas, as medidas que visam a preservação do meio ambiente e a defesa do consumidor, a protecção do contraente mais débil (como a regulamentação das cláusulas contratuais gerais)( 29) e, enfim, todas as acções de “concertação social”, desde a fixação de preços e imposição de salários mínimos e tectos salariais, à legislação laboral protectora dos trabalhadores empregados e que, de tão protectora, acaba por ser também dissuasora da criação de novos postos de trabalho e ainda a criação de órgãos especificamente vocacionados para tal fim, como, entre nós, o Conselho Permanente da Concertação Social.

            Como é bom de ver, sendo múltiplas as contradições inerentes a esta estratégia de integração, podemos, no entanto, resumi-las da seguinte forma: o Estado pretende, por um lado, criar ou melhorar as condições de exercício dos operadores económicos, financiando mesmo determinadas actividades, seja pelo sector ou área geográfica onde se situam, seja pelos fins ou objectivos que prosseguem, seja ainda pela forma jurídica adoptada ou simplesmente pela sua dimensão económica. Por outro lado, regulamentando tão intensa e pormenorizadamente o mercado, o Estado cria um verdadeiro espartilho ao desenvolvimento natural dessas mesmas actividades. Impondo pesados encargos fiscais e administrativos e uma teia burocrática de difícil manejo, alargando o âmbito da segurança social e melhorando os seus objectivos redistributivos, dificulta necessariamente o processo de acumulação capitalista.

            A consequência necessária desta estratégia, por muito que se não queira, traduz-se numa extraordinária dificuldade de acesso ao mercado por parte do pequeno capital e numa prática impossibilidade de crescimento das pequenas e médias empresas.(30)

            Com isso sai, uma vez mais, beneficiada a grande organização empresarial cuja estrutura lhe permite contornar o mercado, suportar os encargos fiscais e parafiscais, enfim, repercutir nos preços todos os seus elevados custos de produção.

            Por isso, muitas das empresas “viáveis” criadas ex novo são ramificações de estruturas empresariais já existentes. Quando assim não sucede e um novo empresário com o sentido do risco e verdadeiro espírito de inovação consegue passar a barreira – limite do crescimento não tardará muito a ser assediado com tentadoras propostas de compra ou de integração provindas – claro está! – da estrutura empresarial dominante ou, utilizando a expressão de Galbraith, das empresas do sistema de planeamento.

            Mas, importa ainda destacar que, sendo a Lei o instrumento privilegiado desta actuação do Estado, não pode o sistema jurídico deixar de reflectir, evidentemente, todas estas contradições.

            Com a hiperjuridificação da vida económica e, de uma maneira geral de todos os processos de mercado, o sistema jurídico perdeu coerência(31), abstracção, certeza e racionalidade, tornando-se prolixo, heterogéneo, fragmentado e de difícil apreensão global.

            No plano científico, as múltiplas especializações podem funcionar como outras tantas linhas de clivagem, impedindo o jurista de ver claro à luz dos valores da Justiça e segurança que, paradoxalmente – ou talvez não – são por vezes preteridos a uma duvidosa “eficácia” economicista. Por outro lado, também não é possível reduzir todo o imenso caudal que incessantemente brota da vida social e que reclama uma específica valoração, às categorias dogmáticas tradicionais.(32)

            Enfim, pode dizer-se que no turbilhão legislativo das sociedades actuais (e nas respectivas correcções, rectificações, revogações, repristinações, etc.) se exige ao jurista que não assuma uma atitude meramente exegética, deixando de questionar a sua matéria-prima à luz dos autênticos valores do Direito.

 

5.  A “ORGANIZAÇÃO” E A ESFERA PÚBLICA

 

            a)  É sabido que a Humanidade deve à Revolução Francesa um aspecto importante do seu património cultural que basicamente se consubstancia na afirmação de um espaço de liberdade individual, nos princípios da legalidade e da igualdade, enfim, na garantia dos direitos do homem e do cidadão.

            A importantíssima distinção entre o homem e o cidadão, que devemos aos conceitos burgueses do séc. XIX, indicia uma concepção da Sociedade e do Estado que pretende separar com nitidez duas esferas de acção – a esfera pública e a esfera privada.

            Nesta actua o homem, individualmente considerado: é um espaço onde, supostamente, os poderes particulares mutuamente se compensam, reciprocamente se anulam.(33)

            Na esfera pública, é chamado a actuar o cidadão que, como se sabe, não era rigorosamente todo o homem mas só aquele que, em função de um status sócio-económico poderia contribuir validamente para a formação da opinião pública.(34)

            Essa contribuição ou participação na esfera pública é, por sua vez, graduada, no pressuposto de que a uma maior proximidade do poder político corresponda uma maior responsabilidade do cidadão – burguês proprietário ou homem culto – conformando-se assim a sua capacidade para influenciar a actuação dos órgãos do Estado.

            A esfera pública é delineada como uma zona de medição entre o Estado e a Sociedade: entre o poder não compensado, mas necessário para assegurar a fidelidade e subordinação dos indivíduos à unidade social, e os poderes privados que, através das relações de mercado, mutuamente se compensam e se anulam.

            Como Jurgen Habermas (35) pretende demonstrar, o conceito burguês de esfera pública acompanha as suas vicissitudes de classe, num longo processo histórico de luta e maturação que culmina com o controlo do poder político. Está intimamente ligado à informação e, consequentemente, às técnicas da sua difusão. Desde as trocas de informações comerciais, inicialmente asseguradas pelas corporações mercantis da Idade Média, até à circulação e ao conteúdo da imprensa (“jornais políticos”) do século XVII.( 36)

            A sua institucionalização corresponde à face parlamentar (de discussão pública) do poder político.(37)

            Pode pois surpreender-se, nesta evolução histórica, uma fase de afirmação comercial, uma de afirmação literária ou cultural e uma fase de institucionalização ou de afirmação política.

            Tal conceito traz consigo um modo de estar na vida radicalmente diferente do das antigas classes aristocráticas que não assumem uma distinção entre a esfera pública e a esfera privada. É que a aristocracia situava-se, por privilégio, na esfera pública e mantinha esta sua condição em todas as relações sociais, isto é, não estabelecia “relações privadas” ou que se situassem numa esfera privada.

            A aristocracia não tinha casa, no sentido de lar, intimidade, vida privada. As próprias relações familiares passavam, muitas vezes, pela Corte e pelos salões mundanos.

            A burguesia, pelo contrário, soube preservar a intimidade do lar, da sua vida privada, austera e exigente, onde não tolerava intromissões. Pese embora o crescente enleio social e consequente indistinção das categorias sociais, ainda hoje é socialmente adequado -para um determinado estracto social- proclamar actos de preservação da sua vida privada.

             b) A consagração constitucional dos direitos individuais, como status negativus, corresponde à delimitação da esfera privada como área reservada e afirmação do indivíduo contra a autoridade e a prepotência do poder político. É a concepção inerente ao Estado de Direito do capitalismo liberal.

            A evolução para o Estado Social de Direito corresponde a uma degradação dos limites entre a esfera pública e a esfera privada, como categorias da sociedade burguesa. Já porque o Estado, assumindo agora também as qualidades de produtor e distribuidor e não só a de consumidor, invade a esfera outrora reservada aos particulares, já porque a “universalização” ou generalização dos direitos de participação (status activus) exige a criação de outras instâncias de selecção e “filtragem” dessa mesma participação. Essa missão é hoje desempenhada, nos países de capitalismo avançado, pelos partidos políticos, pelas associações sindicais e patronais, pelas associações profissionais, desportivas e culturais, enfim, pelas “organizações”, onde cada vez mais têm peso determinante as grandes empresas. É exactamente por se reconhecer implicitamente este facto que, como mecanismo compensatório, se estabelecem constitucionalmente alguns direitos e garantias especiais dos “trabalhadores”, para além dos direitos e garantias genericamente reconhecidas a todos.

            Em suma, as organizações assumem hoje a função mediadora entre a Sociedade e o Estado. Por outras palavras, ocupam a esfera pública, influenciando decisivamente a “opinião pública”. Os próprios veículos ou meios de comunicação social são controlados por organizações, públicas ou privadas, que seleccionam “formadores” da opinião pública.(38)

            Desde os anos sessenta que muitos autores distinguem no subsistema económico três sectores, dois deles repousando no tradicionalmente designado sector privado, ou sector de propriedade privada dos meios de produção.( 39) Um deles, de economia privada, voltado basicamente para o mercado ou a ele ainda sujeito. Outro, oligopolístico, que se rege por estratégias de conformação do próprio mercado, não suportando mais do que uma pequena margem (competitive fringe) de concorrência. O modelo pretende caracterizar directa e expressamente o sistema económico americano. Que, neste aspecto, não diverge do modelo europeu, pelo menos no essencial.

            É evidente, que o critério da titularidade dos meios de produção é hoje totalmente inadequado para explicar a realidade empresarial.

            As grandes estruturas empresariais situam-se todas numa esfera económica pública, seja privada ou pública a propriedade desses meios de produção.

            E na esfera económica privada situam-se as empresas de economia de mercado onde também podem existir – e existem – empresas cuja titularidade ou controlo pertencem directa ou indirectamente a entidades públicas.

 

[1] A expressão é de Jurgen Habermas (Kontrafaktisch), traduzida em inglês por “couterfactual” e em francês “contrefactuel”; Jean Lacoste tradutor do livro de Habermas, Legitimationsprobleme im Spatkapitalismus, com o título Raison et Legitimité, Problèmes de Légitimation dans le Capitalisme Avancé, Payot, Paris 1978, explica assim, em nota da pág. 17, o sentido desta noção importante no pensamento de Jurgen Habermas: “La situation de language idéale qui est nécessairement suposé dans toute discussion réelle est “contrefactuelle”: cést une antecipation, mais une antecipation nécessaire à l’éxistence même (“dans les faits”) de toute discussion rationelle”.

  2 Há noções elementares de direito e de economia política que neste trabalho se pressupõem, pelo que nos dispensamos de as explicar. Como é sabido, Werner Sombart propôs como elementos diferenciadores dos Sistemas Económicos, o espírito ou móbil por que se orientam os agentes económicos , a substância, ou técnicas de produção dominantes e a forma, ou o conjunto de instituições que determinam a organização económica e social.

É útil reter a distinção proposta por A. L. Sousa Franco (Noções de Direito da Economia, AAFDL, 1982/83, pp. 96 e 142), designadamente, entre sistema e regime económicos; em síntese, o sistema seria o modelo de organização e funcionamento de uma dada economia e o regime seria o modelo de articulação do poder (político e social) com a actividade económica.

 3 Sobre os vários critérios de análise e distinção dos “sistemas económicos” pode ver-se A. J. Avelãs Nunes, Os Sistemas Económicos, Coimbra, 1975, esp. pp. 8 a 25; A. L. Sousa Franco, Noções de Direito de Economia, vol. I, AAFDL, pp. 94 a 149; do mesmo autor, Políticas Financeiras e Formação do Capital, Lisboa, 1972, esp. pp. 79 a 101; G. Grossman, Sistemas Económicos e ainda João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), Economia Política, Vol. I, 1967, pp. 23 a 52.

 4 A obra monumental de Fernad Braudel é Civilization Matérielle, Economie et Capitalisme – XV – XVIII Siécle, publicado por Armand Colin, Paris, 1979 e composta por 3 volumes, com os títulos, respectivamente, Les Structures du Quotidien (Tome 1), Les Jeux de L’échange (Tome 2) e Le Temps du Monde (Tome 3). Para o que aqui nos interessa é particularmente importante o terceiro tomo. Em português estão publicados, em livro, com o título A Dinâmica do Capitalismo, Teorema, Lisboa, 1986; as três conferências que o historiador proferiu em 1977 na Universidade John Hopkins, nos E.U.A., e que correspondem a uma síntese da sua concepção sobre o capitalismo e a economia de mercado. Também já publicado em português, pela mesma editora, pode ver-se o livro Fernand Braudel e a História, tradução da obra Une Leçon d’Histoire de Fernand Braudel da Arthaud-Flamarion, Paris, 1986. Trata-se da súmula das Jornadas Fernand Braudel, organizadas nos dias 18, 19 e 20 de Outubro de 1985, um mês antes da morte do grande historiador. As intervenções de Braudel neste colóquio, pelas dúvidas que a si próprio e a todos coloca, revelam um posicionamento crítico de que só os grandes cientistas nunca abdicam. A 2.ª Jornada (19 de Outubro) foi dedicada exactamente ao tema “O Capitalismo”.

Nota de actualização: Entretanto, foram traduzidas e publicadas em português todas as obras anteriormente referidas de Fernand Braudel.

5 Fernand Braudel, A Dinâmica do Capitalismo, cit. Pp. 114 e 115.

 6Bref, de l’examen d’un cas particulier (- o mundo mediterrânico, no séc. XVI -) nous dédouisons qu’une économie-monde est une somme d’espaces individualisés, ecónomiques et non ecónomiques regroupés par elle ; qu’elle répresente une énorme surface (en principe elle est la plus vaste zone de cohérence, à telle ou telle époque, en une partie donné du globe) ; qu’elle transgresse d’ordinaire les limites des autres groupements massifs de l’histoire ». Le Temps du Monde, p. 14. O próprio Braudel nos diz que o termo economia-mundo é uma tradução do alemão Weltwirtschaft cuja noção foi inicialmente proposta por Fritz Rorig.

 7 Le Temps du Monde, p. 16.

 8 Idem, p. 17. O sublinhado é nosso.

 9 F. Braudel, A Dinámica do Capitalismo, p. 90 Como pode já verificar-se, quer em Les Jeux de L’Échange, quer em Le Temps du Monde, o historiador refere-se frequentemente à posição de Portugal e do Império Português, concatenando elementos que nos permitem estabelecer uma ligação estreita entre as vicissitudes históricas estão sofridas por Portugal e os descentramentos e recentramentos descritos.

Por exemplo, a ascensão económica de Amesterdão dá-se em detrimento de Lisboa e Cadis que, no séc. XVI assumiram, de maneira efémera, a posição de Centros do Comércio Mundial. (De resto, Braudel aponta como um grave erro estratégico de Filipe II não ter instalado definitivamente a capital do seu império em Lisboa que, “face à l’ocean, elle est la place revée d’ou controller et dominer le monde. (...) Aussi bien quitter Lisbonne, en 1582, c’etait abandoner un poste d’ou se dominait l’empire, pour enfermer la force espagnole au coeur pratiquement imobile de la Castille, à Madrid. Qu’elle erreur ! ” – Le Temps du Monde, p. 22.

Mais ce n’est pas Lisbonne, si importante soit-elle qui se place alors au centre nouveau du monde. Elle a en mains touts les atouts, semble-t-il. Or une outre ville l’emporte, en somme lui brule la politesse : Anvers. Alors que la desaire de Venise est logique, la non-reussite de Lisbonne étonne au premier abord. Et cependent, elle s’explique à peu prés si l’on remarque que, dans sa victoire même, Lisbonne est restée prisionière d’une certaine économie-monde dans laquelle elle est déjà inserée et que lui a fixè une place (…)”. – Le Temps du Monde, p. 118.

Anvers terá constituído um centro de passagem para Amesterdão e a praça terá sido feita fundamentalmente por mercadores portugueses, espanhóis e italianos.

A consolidação do poderio económico de Amesterdão coincide com o domínio Filipino em Portugal e com a “pilhagem” do Recife e Pernambuco. – O chamado “Brasil Holandês” dura de 1630 a 1654, segundo refere João Ameal, História da Europa, Vol. V, p. 343. Veja-se também Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. IV, pp. 219 a 225. Fernand Braudel dedica em Le Temps du Monde umas páginas a esta usurpação holandesa sob o título em si mesmo sugestivo: “Hollandais contre Portugais: se mettre à la place d’autri”.

Referindo-se às tréguas dos 12 anos entre as Províncias Unidas e “le Roi Catholique” assinadas em Anvers a 9 de Abril de 1609, Braudel diz que em 1610 um barco holândes terá acostado a Lisboa para pedir ao “Vice-Roi” que diligenciasse no sentido de as tréguas serem anunciadas no Extremo Oriente, o que provaria que os portugueses continuavam aí a bater-se contra as “pretensões” holandesas (p. 179).

Em Les Jeux de L’Échange, (pp. 135 a 137) Braudel refere-se à expansão e enriquecimento dos mercadores portugueses na América Latina (Espanhola) onde alguns viriam, mais tarde, a ser julgados pela Inquisição: “Ce sont les procès de Mexico de 1646, 1647 et 1648, ou l’auto de fé du 11 Avril 1649 où figuraient plusieurs grands marchands d’origine portugaise”.

Note-se que tais processos contra portugueses são imediatamente posteriores à Restauração sobre a qual Fernand Braudel, aliás, diz: “Centré sur Lisbonne, étendu aux deux rives, africaine et américaine, de l’Atlantique, lié au Pacifique et à l’Extreme-Orient, le système portugais est un immense réseau qui s’épanouit à travers le Nouveau Monde en une dizaine ou une vingtaine d’années. Cet epanouissement est forcément un fait d’importance internationale. Sans lui, Portugal ne ce serait peut être pas « restauré » en 1649, c’est à dire n’aurait pas recouvré son indépendence vis-a-vis de l’Espagne.

Expliquer la Restauration, comme on le fait d’ordinaire, par l’essor du sucre brésilien, ne serait, en tout cas, suffire. D’ailleurs, rien ne nous dis que le «cycle» du sucre brésilien n’est pas lui même lié à cette opulence marchande (…)”.

Relativamente ao recentramento em Londres, quase inútil se torna lembrar o “papel” então desempenhado ou apenas “sofrido” pelo espaço português. Os factos são perfeitamente conhecidos. A propósito da Balança Comercial nas Economias Nacionais, Braudel dedica duas páginas às relações comerciais Anglo-portuguesas em Les Jeux de L’Échange, pp. 180 e ss..

Apenas por curiosidade dir-se-á que João Ameal em História da Europa, nos lembra sucintamente as “curiosas” questões de Bolama e de Lourenço Marques (pp. 344 e 345), em si mesmo paradigmáticas do empenho político do Governo inglês em cobrir e “legitimar” a sua expansão comercial nos territórios coloniais portugueses. Ambas se verificam – aceitando a cronologia imposta por Braudel –  no início da ascensão de Londres a pólo da economia-mundo: 1838, no caso de Bolama (questão que, todavia, vem muito de trás (1791) aquando da expedição “filantrópica” do Tenente Philip Beaver) e 1821, no caso de Lourenço Marques, quando o Governo inglês “dá ordem para a ocupação da baía contígua à capital moçambicana”.

As sentenças arbitrais, do Presidente dos Estados Unidos, Ulisses Grant (21 de Abril de 1870) e, no caso de Lourenço Marques, do Presidente da República Francesa Marechal Mac-Mahon, (24 de Julho de 1875), reconhecem a primazia dos direitos históricos, sendo-nos, por conseguinte, favoráveis.

Todavia, o poder económico das grandes potências viria a ser razão mais que suficiente para ocasionar uma inversão nos princípios do direito internacional. Assim, na Conferência de Berlim (1884 / 1835) prevaleceu o princípio da ocupação efectiva, em detrimento da chamada tese dos direitos históricos.

O Tratado Comercial de 1810 entre Portugal e a Inglaterra almejou, exactamente, abrir o Ultramar português, especialmente o Brasil, às pretensões comerciais inglesas. A verdade é que desde 1808 que, nos portos brasileiros, os produtos ingleses pagavam apenas 15% de direitos alfandegários, menos do que os produtos importados de Portugal que pagavam 16%. – Veja-se, a este respeito, Armando de Castro, Problemas de Transição do Feudalismo para o Capitalismo, Caminho, 1988, p. 16.

Enfim e para concluir, terá sido já em período de consolidação do poderio inglês que, a 3 de Julho de 1842 é assinado em Lisboa um novo Tratado de Comércio de Navegação, tendo sido Portugal representado pelo Duque de Palmela e a Inglaterra por Lord Howard de Walden, cujo artigo 1.º dispunha: “Os súbditos de cada uma das Altas Partes Contratantes gozarão, nos domínios da outra, de todos os privilégios, imunidades e protecção de que gozarão os súbditos da Nação mais favorecida– J. V. Serrão, op. Cit. Vol. VIII, p. 174.

 9a Nota de actualização: Decidimos manter as três conclusões, sem qualquer alteração, visto que o chamado “processo de globalização”, evidente a partir da década de noventa do século XX, apenas veio reforçar, se bem nos parece, o conteúdo de tais conclusões, apesar das distintas “formas” de dominio e determinação das empresas dos sectores estratégicos e tecnologicamente mais avançados.

10 J. K. Galbraith (1983), Anatomia do Poder, DIFEL, Lisboa (s/d). O autor inclui a riqueza na fonte a que chama Propriedade. Parece-nos todavia que, em português, este conceito é mais restrito e por isso riqueza nos parece mais apropriado. Aliás, uma das características da organização empresarial, e das mais relevantes, traduz-se exactamente na “expropriação” dos pequenos proprietários, ou pequenos accionistas. Em todo o caso, são hoje múltiplos os exemplos de degradação do poder conferido pela mera ou nua propriedade.

Entre nós poderia apontar-se o caso já histórico do arrendamento urbano. De resto, e se bem nos parece, foi neste mesmo terreno que se travou a luta entre a burguesia mercantil – detentora da riqueza mobiliária – e a aristocracia fundiária.

A História, mesmo recente, revela-nos que, através da organização – a do Estado, em última instância – se podem criar paulatinamente condições que levam a um efectivo “desapossamento” ou a uma “expropriação de facto” com relativa facilidade.

 11 Raymond Barre, Manual de Economia Política, Editora Fundo de Cultura S.A., 3.ª edição brasileira, Rio de Janeiro, 1970, Vol. 2, p. 41.

 12 Esta necessidade está na base de uma das mais discutidas e prestigiadas teorias do Comércio Internacional e, simultaneamente, do Investimento Directo Estrangeiro: a teoria do “product cycle” formulada inicialmente por Raymond Vernon que destacou três fases da vida do produto: a fase inicial, ou de novidade do produto, a fase da maturidade e a fase da normalização (standardisation), não só do produto, mas da própria técnica de produção, entretanto já ao alcance de muitos outros produtores. A teoria foi inicialmente formulada tendo em vista as relações entre os Estados Unidos da América e os restantes mercados. Isto é, a inovação partiria naturalmente do mercado norte-americano, atendendo à necessária correlação entre a dimensão das empresas e os investimentos em investigação e desenvolvimento.

Desta forma, à segunda fase corresponderia um grande fluxo de exportações e, eventualmente, de investimento nos restantes mercados  europeus designadamente, pelo seu poder de compra, essencialmente.

Na terceira fase, a empresa teria já necessidade de procurar vantagens nos custos de produção, principalmente no da mão-de-obra. Corresponderia ao investimento nos países menos desenvolvidos . Hoje fala-se em “deslocalização das empresas”. E, se bem julgamos, tal processo é absolutamente irreversível.

Posteriormente, A. Vernon alargaria a sua teoria a todo o investimento com origem nos países desenvolvidos (ou industrializados) e incluiria também nos factores de custo relevantes, não só o preço da mão-de-obra, mas também outros, como matérias primas.

Pode ver.se uma excelente síntese de todas as teorias sobre o IDE em Jumana P. Agarwal, Determinants os Foreign Direct Investement: a Survey, in Weltwiertschftliches Archiv, Band CXVI, Heft. 4, pp. 739-773.

 13 Veja-se Jurgen Habermas, Raison et Legitimité, cit. pp. 20 e ss..

 14Algumas destas empresas em pequena escala encontram-se destinadas à falência logo desde o princípio”. Samuelson, Economia, 5.ª Edição, Gulbenkian, p. 100. “A maior parte das empresas surge hoje e amanhã já desapareceu, sendo a sua esperança média de vida só de seis anos”. – Idem, p. 99.

15 A televisão é, como se sabe, motivo de grandes controvérsias a propósito da sua “instrumentalização” pelo poder político. De facto, esse é apenas um dos aspectos da sua instrumentalização. Desde os concursos aos noticiários, passando pelos programas desportivos e campanhas eleitorais, a televisão é, hoje, em quase todo o mundo o instrumento da Organização – agora em sentido geral – . Utilizando uma vez mais os conceitos de Galbraith; a televisão é um meio poderosíssimo do poder conformador ou condicionante, instrumentalizada pelo poder compensatório ao dispor da Organização.

 16 No entanto, já Max Weber, em Economie et Societé (trad. Francesa, Librairie Plon, 1971) identificava como pedra de toque do crescimento capitalista, uma publicidade agressiva (agressive réclame) que “influencie dans une large mesure les modalités et l’etendue de la converture des besoins de consummateurs...”, p. 99.

 17 No sector de serviços, a publicidade é hoje um ramo dominado pelos grupos multinacionais. Este ramo constitui, aliás, um bom exemplo das facilidades que a “transnacionalização” oferece. Ao programarem a sua instalação num determinado país – normalmente através da aquisição de uma agência local – os grupos têm já a sua carteira de clientes praticamente assegurada. São decisões que ultrapassam os mercados nacionais. Não são os preços praticados que determinam o “consumo” dos serviços de publicidade. E pouco tem a ver, também, com a competência da agência ou dos profissionais que a servem. Os clientes locais ganham-se ou perdem-se segundo as relações que se estabelecem entre os escritórios centrais de Nova Iorque, Londres, Frankfurt ou Berlim, Paris, Bruxelas e mais recentemente Tokyo. Como são as grandes empresas que mantêm grandes campanhas publicitárias, é extraordinariamente difícil a uma agência de um pequeno país ter acesso ao “melhor” mercado. Por outro lado, as pequenas agências também não podem competir em custos de produção. É que grande parte dos filmes para a televisão são produzidos pela empresa-mãe ou por qualquer filial e simplesmente “adaptados” aos diferentes mercados nacionais. É assim que um consumidor de qualquer parte do mundo pôde ter o prazer “gratificante” de ver o tenista John Mac Enroe efectuar o mesmo “smash” e ouvi-lo aconselhar uma “máquina” de barbear em japonês, em francês, espanhol ou simplesmente em inglês legendado. Isto, é claro, se esse consumidor puder viajar por todos esses países. E o mesmo sucede hoje com “todas as celebridades” de todos os sectores, importantes para o chamado  jet set preferencialmente.  Diga-se - já agora, - e porque vem a propósito, que é descarado e vergonhoso o contínuo desrespeito à Lei da publicidade que, como tantas outras leis, são mais para “ingês ver” do que para cumprir.

O Decreto-Lei n.º 303/83 de 28 de Junho, que regulamentou a publicidade, foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 330/90, de 28 de Outubro. Este, por sua vez, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 74/93, de 10 de Março na sequência da publicação do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro cujo objecto é o crédito ao consumo. Assim, revogou-se também o Decreto-Lei 266/89, de 18 de Agosto e as Portarias n.os 811/89 e 812/89 de 14 de Setembro, diplomas estes que regulavam a publicidade no sector automóvel. Mas não ficamos por aqui! O Decreto-Lei n.º 6/95, de 17 de Janeiro, veio, uma vez mais, alterar e revogar parcialmente o chamado Código da Publicidade (falamos ainda do Decreto-Lei n.º 330/90), extinguindo o Conselho Consultivo da Actividade Publicitária.

Mas o legislador português é deveras prolífero e também prolixo, como é fácil de deduzir, e ainda muito “irrequieto”.

O Código da Publicidade actualmente em vigor, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 275/98, de 9 de Setembro e publicado em anexo a este diploma. A sua fiscalização compete, agora, especialmente, ao Instituto do Consumidor que parece ter substituído, assim, a Inspecção Geral das Actividades Económicas. Mas as sanções são aplicadas pela Comissão de Aplicação de Coimas, cujo presidente se não nomeia directamente, mas sim por remissão (art.º 39.º) para o n.º 2, do artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro (Infracções Antieconómicas). Consultando este diploma deparamos com mais uma comissão presidida por um Magistrado Judicial.

O legislador não tem de que se desculpar! Pela nossa parte, correndo o risco de saturar o leitor, julgamos tratar-se de um bom exemplo do atoleiro legislativo em que o país se vem afogando, mas também da total falta de fiscalização, que o mesmo é dizer, da completa impunidade!

 17a  Os principais ‘’ serviços’’ ao dispor do utilizador da Rede (Net) são, neste momento, as páginas de informação  (WWW) e o correio electrónico ( e-mail). A combinação de ambos permite às empresas que utilizam a Rede vender os seus produtos ou serviços por via electrónica. É o e-commerce .( A utilização de expressões inglesas em tudo o que se relaciona com a informática é, se bem julgamos, inevitável e irreversível, por muito que isso nos custe ). O correio electrónico  é um meio fantástico de comunicação quase instantânea. Pelas suas incríveis virtualidades, presta-se também a todos os abusos. Calcula-se que 80% de todas as mensagens electrónicas sejam spam, isto é, mensagens indesejáveis. Apesar de todas as boas intenções, das entidades com poderes de autoridade e das empresas de software que vêm expostas as debilidades dos programas que comercializam pelas sistemáticas devassas dos hackers ( piratas), a verdade é que não se prevê fácil a salvaguarda da privacidade, de tal forma são poderosos e praticamente ilimitados os meios que a rede universal ( Internet) pode explorar. Utilizámos o termo hacker por ser o mais conhecido. Em bom rigor, os hackers são protagonistas importantes e até desinteressados nos extraordinários avanços da Internet, por partilharem experiências e conhecimentos que vão adquirindo. O termo anglo-saxónico correcto para os verdadeiros “piratas” da rede, responsáveis pelos constantes “virus” que infectam sistemas informáticos em todo o mundo é o de crackers.

Há já muita legislação nacional e comunitária relativa à informática e à utilização da Internet. A Fundação para a Computação Científica Nacional  disponibiliza o essencial dessa legislação e regras internacionais na sua página ( www.fccn.pt). Podem ainda consultar-se as páginas da ANA ( Assigned Numbers Authority), da ICANN ( Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) e da IAB ( Internet Architecture Board).

Podem consultar-se ainda Garcia Marques – Lourenço Martins, Direito da Informática, Almedina, Novembro de 2000; Joel Timóteo Ramos Pereira, Direito da Internet e Comércio Electrónico, Quid Juris, Lisboa 2001; José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade de Informação, Almedina, Abril de 2001; Giovanni Pascuzzi, Il diritto dell’era digitale, Il Mulino, Dicembre 2002.

 18 Em Portugal, como em todo o lado, basta ler os jornais para nos apercebermos deste facto. Apenas um exemplo, já antigo de resto. O semanário “Expresso” de 25 de Outubro de 1986 noticiava: “A administração da... está a sondar o mercado financeiro nacional com vista a obter os recursos suficientes para proceder até ao fim do ano, ao despedimento inevitável de cerca de 800 trabalhadores (...). A empresa solicitara, no Verão passado, ao Ministro da Indústria e Comércio e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, a atribuição de subsídios directos, reembolsáveis, no montante de 2 milhões de contos para suportar os custos de despedimento de dois mil trabalhadores até finais de 1988, data das últimas encomendas de centrais electromecânicas por parte do seu principal cliente, os CTT/TLP (...)”.

Este ou outros casos são vistos com grande naturalidade, mesmo pelos nossos mais fervorosos defensores das doutrinas liberais. Que os contribuintes paguem os custos das “empresas” do sistema de planeamento, parece-lhes natural. Os pequenos e médios empresários que, com sacrifícios inacreditáveis, são quem verdadeiramente suporta todo o sistema, são acusados frequentemente de “exploradores”, de fugirem aos impostos e outras generalizações que ameaçam tolher o desenvolvimento económico, a inovação e a coragem para assumir riscos nas economias desenvolvidas e, sobretudo, nas economias europeias.  

A verdade é que o verdadeiro liberalismo ( epistemológico ) não pertence a este ou àquele sector político-partidário. Ele é património da humanidade. Um importante e irrecusável património, de resto. Por isso,  todos aqueles que, com isenção e lucidez, pensam os processos históricos, têm o direito de se dizerem liberais, no seu sentido epistemológico. Incorrecto, se bem nos parece, é que a maioria da chamada “esquerda” confunda o liberalismo epistemológico com a sua degradação meramente ideológica e recuse um contributo histórico essencial à liberdade, à verdadeira evolução económico-social e à afirmação dos direitos do Homem. Nesta perspectiva acabam por dar razão a todos quantos pensam que socialismo e liberdade são conceitos em permanente conflito.

19 J. K. Galbraith, Economia e Bem Público, pp. 164 e ss..

Veja-se também Max Weber, Ensaios de Sociologia, 5.ª Edição, Zahar Editores, S.A., Rio de Janeiro, 1982, VIII, A Burocracia: “Nos governos públicos e legais, esses três elementos constituem a «autoridade burocrática». No domínio privado, constituem a «administração burocrática»”.

A burocracia assim compreendida, se desenvolve plenamente em comunidades políticas e eclesiásticas apenas no Estado Moderno, e na economia privada, apenas nas mais avançadas instituições do capitalismo”. (p. 227).

 20 Nos pequenos países, como Portugal, este fenómeno a que a vox populi poderia chamar “a dança dos gestores e dos políticos” é, claro está, particularmente notório. Em alguns casos – bem conhecidos – o fenómeno atinge os limites do escândalo. Mas tudo é muito transitório. Dias depois da respectiva divulgação já o “escândalo” foi esquecido e tudo regressou à “normalidade”. Se a isto acrescentarmos as “burocracias partidárias” de cúpula, encontraríamos certamente relações simbióticas e coincidências de interesses provavelmente inesperadas.

Não é este o lugar próprio para discutirmos a componente burocrática dos cargos políticos. Atente-se contudo nesta afirmação de Max Weber, op. cit. na nota anterior, p. 234: “O tipo puro de funcionário burocrático é nomeado por uma autoridade superior. Uma autoridade eleita pelos governados não é uma figura exclusivamente burocrática. Decerto, a existência formal de uma eleição não significa, em si, que atrás dela não se esconda uma nomeação – o que ocorre no Estado, especialmente no caso da nomeação indicada pelos chefes partidários”.

 21 Verifica-se em muitos autores uma tendência para interpretarem o conceito de tecno-estrutura de Galbraith em paralelo com um particular entendimento do fenómeno usualmente conhecido e tratado como separação ou dissociação entre a propriedade e o controle da empresa. É necessário esclarecer este ponto. “A tecno-estrutura é constituída por administradores das sociedades, advogados, cientistas, engenheiros, economistas, controladores, especialistas de comercialização e publicidade”. – J. K. Galbraith, Economia e Bem Público, p. 186. “Todos os directores foram escolhidos por Harold Macbehan e eleitos automaticamente por procuração – controlada também pela administração. Os testes de selecção eram rigorosos; os escolhidos deviam possuir alta reputação no mundo da finança, ter desempenhado um cargo político em Washington e ser conhecidos por nunca interferirem nas decisões dos administradores”. – Galbraith, A Era da Incerteza, Moraes, Lisboa 1980, p. 228.

Vem-nos à ideia o esforço dos casais para atingirem maior harmonia e compreensão. A comparação não é absurda, porque na sua intimidade associativa, a vida da sociedade anónima é um casamento com amor, mas sem sexo. Existe a mesma necessidade de compreensão, de harmonia, de aperfeiçoamento – e, acima de tudo, de persuadir o indivíduo que, a determinado nível do exercício do poder, a sua vontade deve subordinar-se, sem o amargo da derrota, à de outrem”. – A Era da Incerteza, p. 221.

A tecno-estrutura não é pois um “corpo de funcionários” desligado do capital de controlo. Os postos mais altos da tecno-estrutura estão absolutamente dependentes do capital de controlo, quando não são exercidos pelos seus detentores.

E o fenómeno da separação entre a propriedade e o controlo da empresa significa apenas que a maioria dos accionistas nenhum controlo exerce sobre a empresa, exactamente em virtude da disseminação desse capital. Por isso é mais fácil aos grandes accionistas apropriarem-se da empresa, isto é, controlarem-na e dirigirem-na de acordo com os seus interesses e objectivos.

 22 Outros autores chamam-lhe “capitalismo de maturidade, tardio, social”, etc., contrapondo-o aos tipos de anteriores fases históricas: capitalismo nascente ou pré-industrial e industrial. Baseando-se no grau de interferência do Estado na actividade económica, propõem-se também modelos funcionais de capitalismo: liberal ou abstencionista, intervencionista e dirigista. Veja-se A. L. Sousa Franco, Noções de Direito de Economia, cit. pp. 118 a 122.

 23 J. Habermas, Raison et Legitimité, cit. p. 13.

24 J. Habermas, op. cit. P. 15.

Veja-se também Norbert Reich, Mercado Y Derecho, trad. De António Font, Ariel, S.A., Barcelona, 1985, pp. 54 e ss..

 25 Numa obra recente, Teoria de la Accion Comunicativa (trad. Esp.), Vol. II (pp. 458 e ss.), Habermas procura explicar os efeitos previstos por Weber como consequência da “modernidade” – a perda de sentido e a unilateralidade do estilo de vida – pela extensão dos mecanismos ou meios de regulação dos sistemas económico e político (o dinheiro e o poder) para o mundo da vida (âmbito de acção estruturada comunicativamente).

                A crise do Estado Providência constitui um dos maiores desafios político-económicos que o mundo e particularmente a Europa enfrentam. O modelo social europeu, expoente máximo do Estado Providência, está definitivamente esgotado e é um travão indiscutível ao desenvolvimento económico. Este modelo está na origem da apatia e da falta de iniciativa da sociedade civil e foi determinante para a obesidade do Estado, que se tornou um “monstro”, devorador insaciável dos recursos gerados pela sociedade. A situação é verdadeiramente dilemática: os partidos no poder satisfazem a sua clientela com cargos públicos; quantos mais apaniguados o partido tem na administração pública, mais facilmente garante a ocupação do poder e as vitórias eleitorais. Nos sistemas democráticos, esta realidade leva ao crescimento desmesurado da administração pública, que se torna ineficiente e improdutiva e, pelas mesmas razões, arrasta a produtividade global para níveis menos que medíocres, determinando assim, mais tarde ou mais cedo, o sacrifício relativo de todos os salários ou da parte que legitimamente lhes corresponde na distribuição do rendimento nacional. Quando a administração pública, para além de outras garantias, ainda desfruta de melhores salários do que o sector privado e é simultaneamente a grande responsável pela baixíssima produtividade, como sucede em Portugal, então a injustiça – a verdadeira injustiça – assume uma dupla faceta, como se compreende. Deveremos ainda acrescentar que os trabalhadores da administração pública ainda dispõem de maior poder reivindicativo do que o dos sectores privados e são, por isso mesmo, muito mais temidos pelo poder político.  

26 Para uma tipologia das modalidades de intervenção do Estado, pode ver-se A. L. Sousa Franco, Noções de Direito da Economia, Vol. I, AAFDL, 1982-83, p. 300.

 27 Estas questões serão adiante tratadas mais pormenorizadamente.

Entre nós, o Decreto-Lei n.º 132/83, de 18 de Março, estabeleceu incentivos fiscais à concentração e cooperação de empresas que operassem nos sectores das indústrias extractivas e transformadoras. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 160/85, de 13 de Maio, veio alargar esses incentivos, mas só para os actos de concentração empresarial levados a cabo até 30 de Dezembro de 1986, às empresas dos restantes sectores económicos. O Decreto-Lei n.º 132/83 foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 251/86, de 25 de Agosto.

Em Abril de 1987 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 181/87, de 21 de Abril, com vida pré-definida até Dezembro de 1989. No seu artigo 2.º, definiu como actos de concentração empresarial, a fusão-constituição de uma nova sociedade por acções ou por quotas e a fusão-incorporaçãode todo ou parte do património de outra empresa, ainda que esta não se dissolva”. O artigo 3.º especificava o que devia entender-se por actos ou acordos de cooperação: constituição de agrupamentos complementares de empresas (ACE – Decreto-Lei n.º 4/73, de 4 de Julho) para prossecução de qualquer das actividades aí enumeradas e a constituição de pessoas colectivas de direito privado sem fim lucrativo “com a finalidade de, relativamente ao sector a que respeitam, manter um serviço de assistência técnica, organizar um sistema de informação, promover a normalização e a qualidade dos produtos e conveniente tecnologia dos processos de fabrico, bem como, de um modo geral, estudar as perspectivas de evolução do sector”.

Como o consórcio (regulado pelo Decreto-Lei n.º 231/86, de 28 de Julho) apesar de ser uma excelente forma de cooperação empresarial, não constitui todavia, uma nova pessoa colectiva, parecia, embora estranhamente, não ter sido considerado pelo legislador português como um acto de cooperação empresarial digno de beneficiar desses incentivos.

Aos actos de concentração e de cooperação definidos no Decreto-Lei n.º 181/87, concediam-se incentivos fiscais, directamente ou por dedução de prejuízos na matéria colectável (artigo 1.º).

Na sequência da entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 1989, dos Impostos Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e das Pessoas Colectivas (IRC) e da Contribuição Autárquica (CA), – Decretos- Leis n.os 442-A/88, 442-B/88 e 442-C/88, todos de 30 de Novembro – , foi aprovado o Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, que aprovou o chamado Estatuto dos Benefícios Fiscais. A ideia do legislador foi correcta. Os benefícios de natureza estrutural eram contemplados nos impostos sobre o rendimento. O Estatuto enquadraria benefícios de natureza não estrutural, mas ainda assim estável e com carácter de permanência, deixando para os Orçamentos de Estado, todos aqueles benefícios marcadamente conjunturais e de regulação mais frequente.

Pouco estável é, no entanto, o pensamento legislativo. Em 29 de Dezembro de 2000 foi publicada a Lei n.º 30-G/2000, reformando a tributação do rendimento e adoptando “...medidas destinadas a combater a evasão e a fraude fiscais...”. As alterações incidiram sobre os Códigos do IRS, IRC, o Estatuto dos Benefícios Fiscais, a Lei Geral Tributária, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Procedimento e de Processo Tributário e ainda legislação avulsa. Da mesma data, 29 de Dezembro, a Lei n.º 30-F/2000 alterava o Estatuto dos Benefícios Fiscais, no tocante ao regime aplicável à zonas francas da Madeira e da Ilha de Santa Maria.

Finalmente, e ao abrigo da autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 17.º da já mencionada Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, foi publicado em 3 de Julho o Decreto-Lei n.º 198/2001, que operou uma revisão global dos articulados dos Códigos do IRS e IRC, bem como o Estatuto dos Benefícios Fiscais., enunciando-se como propósito a criação de “... condições de maior clareza, segurança e estabilidade para o conhecimento das normas fiscais, seja do ponto de vista da administração fiscal, seja do ponto de vista do sujeito passivo do imposto”.

É a polémica reforma fiscal dos impostos sobre o rendimento. A ver vamos o que será feito desta reforma! Como é sabido, a contribuição autárquica, por exemplo, já foi substituída pelo IMI ( Imposto Municipal sobre Imóveis ) e a velha Sisa pelo IMT ( Imposto Municipal sobre Transacções Imobiliárias ) no âmbito da prevista reforma dos impostos sobre o património.

 28Questo attegiammento positivo induce la Commisione, come pure gli ambienti industriali, a retinere che gli ostacoli di ordine legale o psicologico che possono oporsi alle concentrazione debbano essere eliminati” – Memorando da Comissão, I, Il problema della concentrazione nel Mercato Comune, de 1 de Dezembro de 1965.

Vd. Também a proposta de regulamento, já reformulada, para um estatuto da sociedade anónima europeia, remetida ao Conselho a 13 de Maio de 1975, Bull.CE supl. 4/75. Sobre o assunto, Etienne Cerexhe, O Direito Europeu, Vol. II, Editorial Notícias, pp. 352 e ss. E, com referência ao primeiro texto, J. Boucourechliev, Por une S.A.R.L. Européenne, PUF, Paris, 1973. Nada de consistente  saíu, entretanto, da gaveta  burocrática de Bruxelas, a este respeito.

                No entanto, e com idêntico propósito, foi criado o AEIE ( Agrupamento Europeu de Interesse Económico) pelo Regulamento (CEE) nº 2137/85, de 25-7, regulamentado, em Portugal, pelo Dec-Lei nº 148/90, de 9 de Maio. Desde que satisfaçam as condições do Regulamento Comunitário, os ACE ( Agrupamentos Complementares de Empresas), instituídos entre nós pela Lei nº 4/73, de 4 de Junho e DL 430/73, de 25 de Agosto, podem transformar-se em AEIE “independentemente de processo de liquidação e sem criação de uma nova pessoa colectiva...” , e a solução inversa também é admitida, nos termos do artº 11º do DL 148/90.

29 Entre nós o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, que entrou em vigor a 25 de Fevereiro de 1986, tentou “conformar” legalmente as chamadas cláusulas contratuais gerais. Inspirou-se na correspondente lei alemã de 1976, Gezetz Zur Regelung des Rechts der Alegemeine Geschaftsbedingungen. Pese embora a importância jurídica do diploma, ele passou quase despercebido durante anos e é ainda desrespeitado, na sua essência, por múltiplos contratos pré-estabelecidos por grandes empresas de todos os sectores. Este Decreto-Lei sofreu ligeiras alterações introduzidas pelos Decretos-Leis  220/95, de 31 de Agosto e 249/99, de 7 de Julho.

Face à impunidade que campeia e alastra em Portugal, a filosofia destas grandes empresas traduz-se num princípio de ignorância ou inacção da contraparte. E, provavelmente, vale a pena correr o risco. De facto, o que verdadeiramente separa Portugal do resto da Europa é a falta de consciência mínima dos seus direitos por parte do consumidor português, a inoperância inadmissível dos organismos de fiscalização económica – enfim, os ingredientes essenciais de um Estado Social de Direito – . Como a maioria das instituições não funciona – incluindo a administração da Justiça – vale a pena não cumprir. Utilizando o adágio popular em sentido lato pode dizer-se que, hoje, “…em Portugal, o crime compensa…” 

 30 Resultado este que, entre nós, se traduz numa violação clara do artigo 86.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe: “O Estado incentiva a actividade empresarial, em particular das pequenas e médias empresas, e fiscaliza o cumprimento das respectivas obrigações legais, em especial por parte das empresas que prossigam actividades de interesse económico geral”.

Na redacção anterior à Revisão de 1989 esta matéria estava prevista no artigo 85.º, n.º 1, que dispunha: “O Estado fiscaliza o respeito da Constituição e da Lei pelas empresas privadas e protege as pequenas e médias empresas económica e socialmente viáveis”. Com a Revisão de 1989, este preceito passou a corresponder ao artigo 87.º, n.º 1 com uma ligeira alteração: “O Estado fiscaliza o respeito da Constituição e da Lei pelas empresas privadas e protege as pequenas e médias empresas economicamente viáveis”.

 31 Veja-se, de José Hermano Saraiva, o extraordinário artigo publicado da Revista Nomos, n.º 2, Julho/Dezembro de 1986, com o título A Coerência, Critério de Validade Jurídica. O autor desmonta o nó vital de alguns sofismas Kelseneanos e de forma plenamente justificada, afirma (p. 11): “Um sentido metafísico, inerente à existência humana está constantemente presente, quer se queira quer não, quando se estuda o Direito porque toda a perspectiva consciencial – e a metafísica não faz excepção – se projecta nas formas culturais entre as quais o Direito se inclui. O que na realidade se situa fora do Direito não é a referência valorativa, mas a especulação doutrinal sobre qual seja a verdadeira natureza dos valores”.

O “fenómeno” do crescimento da matéria jurídica é conhecido, em Sociologia, por “conjuntura do Direito”, expressão esta que se deve a Fritz Werner. A maior parte dos sociólogos não vê o fenómeno como algo de positivo. Ele resulta da necessidade crescente de o Estado exercer um “controle social” que se pretende eficiente e também do esboroar da força integradora ou meramente socializante de organizações ou instituições intermédias de natureza religiosa, familiar ou meramente cívica, melhor, talvez, da perda de eficácia dos ordenamentos jurídicos autónomos e informais determinados pela existência dessas associações intermédias.

Alguns sociólogos, no entanto, como Manfred Rehbbinder, vêem no esmorecer da força integradora desses outros ordenamentos, uma afirmação da liberdade individual, representando a conjuntura do Direito, por conseguinte, um fenómeno positivo. Não partilhamos desta opinião. Todo o comando imposto do exterior por um poder único e centralizador, como o do Estado, traduz-se numa uniformização, numa padronização dos comportamentos e atitudes que destrói o pluralismo, a criatividade e, por conseguinte, a liberdade individual. Veja-se de Manfred Rehbbinder, Sociologia Del Derecho (trad. esp. de Gregório Robles Mórchon), Ediciones Piramide, S.A., 1981, esp. pp. 145 e ss..

 32 Reportando-se exactamente à empresa, diz o Prof. Orlando de Carvalho, Critério e Estrutura do estabelecimento Comercial, Coimbra, 1967, p. 15: “Mas é evidente ser o malogro ainda maior quando uma técnica que se formou para as estruturas simples e essencialmente estáticas pretende impor-se para estruturas complexas e essencialmente dinâmicas ou, pior ainda, da pandectística, que é já uma deformação ou uma inversão do espírito originário da técnica romanística”.

 33 Cfr. artigo 4.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26/08/1979: “A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da Sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei” – Jorge Miranda, Textos Históricos de Direito Constitucional, p. 58 – .

 34 Veja-se o artigo 2.º da Secção II, Cap. I, Título III (dos Poderes Públicos) da Constituição Francesa de 1791, em Jorge Miranda, op. cit. p. 64.

A primeira Constituição Portuguesa (de 1822) afirmando no seu artigo 21.º a cidadania de todos os portugueses, regulamentava pormenorizadamente, no artigo 33.º, o direito de voto negando-o a muitos “cidadãos” (designadamente aos vadios, criados de servir, filhos-famílias que estivessem no poder e companhia dos seus pais, “salvo se servissem ofícios públicos”, etc.); nos artigos 34.º e 35.º delimitavam-se as condições de inelegibilidade, entre as quais figurava a insuficiência de renda “procedida de bens de raíz, comércio, indústria ou emprego”.

A legislação eleitoral oitocentista sofreu várias vicissitudes. Quase todas num sentido restritivo, relativamente à Constituição de 1822. Assim, por exemplo, no Verão de 1836, as alterações impostas determinavam que só poderiam ser eleitores do primeiro escalão aqueles que auferissem um rendimento anual superior a cem mil réis; do segundo, aqueles cujo rendimento fosse superior a duzentos mil réis; para ser eleito deputado teria de auferir-se um rendimento anual superior a quatrocentos mil réis.

As eleições desse ano foram ganhas pelo Governo. Todavia, a oposição venceu em vários círculos eleitorais. Todos os deputados do Porto pertenciam à oposição. A chegada dos deputados do Norte a Lisboa, em 9 de Setembro de 1836, está na origem da insurreição popular conhecida por Setembrismo, da qual surgiram, como vultos mais significativos Sá da Bandeira e Passos Manuel (José Manuel da Silva Passos) que se notabilizara já como Tribuno Parlamentar. Deve-se-lhe a reforma do ensino (criação dos liceus, do ensino politécnico e das escolas médico-cirúrgicas em Lisboa e no Porto) e a proibição do tráfico de escravos ao Sul do Equador (Decreto de 10 de Dezembro de 1836). Como é sabido, a bandeira ideológica do Setembrismo foi a reposição da Constituição de 1822 e, consequentemente, do princípio de que a Soberania reside na Nação.

 35 Jurgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública, trad. de Flávio R. Kothe, Edições Tempo Brasileiro, Lda., Rio de Janeiro, 1984.

 36 Habermas, op. cit., pp. 27 e ss..

 37 “Desde o começo, o Parlamento esteve preso à contradição de ser uma instituição voltada contra o poder político, mas sendo ele mesmo fundado como um «poder». – J. Habermas, op. cit., p. 270.

38 Não é em vão que, do jogo estratégico dos grandes grupos económicos, faz normalmente parte o controlo de um qualquer meio de “comunicação de massas”, pese embora a repetidamente apregoada pouca rendibilidade deste sector económico.

 39 J. Habermas, Raison et Legitimité, cit. p. 54 e autores aí referidos, e J. Kenneth Galbraith, O Novo Estado Industrial, já citado.

INSOLVÊNCIA E SOBRE-ENDIVIDAMENTO

Brevemente. 

FISCAL

Brevemente. 

TRABALHO

Brevemente.